O CANTO LIVRE DE PAPO FURADO
Introdução
Para o carnaval de 2026, a Unidos Piedade volta seu olhar para dentro. Se debruça sobre parte de sua própria história, em uma imersão poética que mistura a grandeza da trajetória de Edson Papo Furado com a experiência coletiva aquilombada que é a Unidos da Piedade. Uma amálgama de ancestralidade e resistência. “O canto de Livre de Papo Furado” é mais que um enredo. É uma ode musical que celebra e homenageia um dos maiores nomes desta agremiação. Através de seu canto e sua musicalidade, vamos inspirar a todos para que vivam livres como ele e seu canto.
Papo Furado nunca se curvou diante as imposições da vida e da sociedade. Sempre foi livre, sem se definir por inteiro, mudando a cada esquina, se adaptando a cada adversidade, se moldando às necessidades e, principalmente, ressignificando cada passo.
Sinopse
1° CANTO – O PRELÚDIO DO MORRO, A ORAÇÃO DO SAMBA
“- Às seis horas da tarde, o sino da igreja bateu… Unidos da Piedade desceu.”
Todos escolheram seus melhores sonhos, sonhos de quarta-feira, e os vestiram para seguir em cortejo, romaria, procissão, caminhada – ou melhor, descida – para acolher, cantar e encantar o Anjo Preto.
Naquelas montanhas, onde as pedras são as vizinhas e é bem pertinho do céu, tão perto que os deuses desceram para acompanhar tal correria das pessoas. Aqui, o morro se fez altar. E, às avessas, na fantasia carnavalesca que tudo inverte e converte, aqui os anjos não servem os deuses: os deuses servirão e ouvirão um anjo. O Anjo Preto!
De canto rouco, forte, inigualável.
Todos seguiam a voz do Anjo preto.
“- Foi agora que eu cheguei, Doná! Foi agora que eu cheguei”
Assim ele avisava que havia chegado.
2º CANTO – DAS ÁGUAS, DOS CHÁS, DAS FONTES, MELODIAS DA HARMONIA DA VIDA
Dobra, dobra, folha de caderno. Redobra mais um pouco, e temos um barquinho. É na correnteza nos fundos de casa, onde o murmúrio das águas e o canto dos pássaros são trilha sonora, que o menino Edson brincava de barquinho de papel e ouvia a tia lavando roupa e entoando: “- Madalena, Madalena / você é meu bem querer…”
A descoberta dos sons vem da natureza, não só do ambiente enquanto brinca, mas de sua natureza negra manifestada nas toadas de congo, magia das forças ancestrais de África em batuque de tambor. Louvando São Benedito, puxando mastro, rodando saia e cantando. “Eu já batia Congo desde pequeno”.
E foi ainda pequeno que ele seguiu os conselhos de sua avó e fez a receita do gargarejo de cigarra. “Vai na mata e pegue as 3 cigarras que mais cantar, faça um chá e gargarejo. Não pode beber, apenas gargarejar“.
Das águas da correnteza, da brincadeira com barquinho, ao morro das fontes, as águas da vida se desenham feito rio na mata.
E antes de sambista? Sapateado e rockeiro! Cabelo grandão, estilo black-power, ouvindo Chuck Berry, Elvis e Little Richard. O adolescente Edson treinou o sapateado dos filmes mudos, a liberdade dançada e, sobretudo, o protagonismo de ser o que se quiser.
Enfim… a vida foi seguindo seu fluxo e serpenteando feito a mais perfeita melodia dedilhada por Papo em um violão. A música sempre se fez presente, moldando, criando e recriando o dia a dia.
3º CANTO – DA BOEMIA, DA NOITE, RUA SETE, RODAS, BATUQUES E SAMBAS
“Edson! Canta aquela música do Papo-furado.”
No caminho do trabalho, a parada no bar do Adão. O violão ajuda a entoar os versos: “Mudando de conversa onde foi que ficou/Aquela velha amizade/Aquele papo furado todo fim de noite…”, gravada por Dóris Monteiro, mas eternizada na voz de Edson, o Papo Furado.
Foi elevando os ideais de liberdade à potência máxima que ele se tornou o Papo que todos conhecem. É no samba que sua negritude se manifesta de forma consolidada. Os tambores rememoram os batuques que ouvia quando criança. “Bate forte no couro e deixa o pêlo arrupiar”, seu grito, uma invenção de seu irmão e parceiro de composições – Edmilson Caroço – reflete muito essa relação entre a batida do tambor e a ancestralidade.
“Senhor me perdoa/Por este pecado que eu fiz/Descer o morro cantando/Enquanto batia o sino da matriz.”
De bar em bar, de templo em templo, a sagração da vida boêmia. É nos botecos que ele reza, nos bares que alimentam a sua alma.
“- a minha igreja é isso aqui, ó, o boteco, eu não sei rezar, porra, vou fazer o que em igreja?”. O sambista que se preze não tem hora pra chegar/faz do samba sua oração/o violão o seu altar”.
É no sobe e desce, pelas ruas, esquinas, becos e escadarias, no morro, nos bares, nos palcos, na Rua Sete, na Piedade, no Moscoso e na Fonte Grande que a poética do dia a dia forja o ser musical de Papo Furado. Um filósofo da simplicidade da rotina, a cada levantada de copo, uma reflexão, o poder de transformar o trivial em riso, elevando a poesia do cotidiano ao divino. Cantando a beleza da musa inspiradora, a “Mulher Luz”, ou o malandro com “Bafo de Tigre”, que nem urubu aguenta, sua voz vai dando voz e vida a todos que se reconhecem na corriqueira poética do cotidiano, afinal quem nunca se embalou com a sinfonia do pingo d’água que cai pelo buraco, no zinco do barracão, sobre a bacia no chão.
“Faça tua sinfonia/ pra fazer a nostalgia dentro do meu coração/vem de volta pingo d’água/dono do meu coração”
E, assim, empresta sua voz, também, ao exercício de salvaguarda, como parte da Velha Guarda do Samba Capixaba, se colocando como um bastião do samba. Junto aos outros, forma uma guarda negra para perpetuar a cultura, que segue marginalizada, lembrando que até preso já foi por fazer samba. E assim seguiu, fazendo samba, emprestando sua voz para as outras vozes, sendo capitão da malandragem. Um líder que, gingando pela vida, sambou por todos os cantos, e cantou por todos os sambas.
Papo é a profanação do divino, a divinização do profano.
4º CANTO – EPÍLOGO DO QUILOMBO, A COROAÇÃO
“Ô ô ô ô
Liberdade, Senhor..”
Ao apito do mestre, os tambores se aquecem. Surdo, repique, tamborim. O alusivo se inicia. Mas aqui vou escrevê-lo de forma diferente: “Papo Furado, se você me ama, aceita essa lembrança minha”. É chegada a hora da coroação. Os tambores da Piedade, no alto do morro, dobram para saudar ele, o nosso Griot, preto velho: um Obá. Desde a fundação, por longos anos, Papo Furado foi a nossa voz! A voz que bradou, cantou, sambou e arrepiou a todos entoando sambas inesquecíveis. Papo cantou as nossas 14 estrelas. Um líder negro que ajudou a dar identidade para a Piedade, vivenciando – através de sua voz – a resistência.
“ No meu reino de amor e beleza
Racismo, maldade e tristeza
Não podem existir
Mandela nas cores da piedade
Grita contra o apartheid
Para o mundo inteiro ouvir”
O mundo inteiro talvez ainda não tenha ouvido, mas Nelson Mandela, naquela ocasião em visita ao nosso estado, te ouviu e nós seguimos ouvindo o grito contra o preconceito que ecoa a cada nota que sai de sua garganta.
A Piedade é o quilombo onde, por excelência, a ancestralidade se faz viva no riscado de Aroldo Rufino, na regência de Mestre Aloísio Paru e Mestre Edu, no Sonho de Rominho e na Voz de Edson Papo Furado. Hoje, a nossa voz canta Papo Furado, hoje o nosso canto se inspira na ousada liberdade deste puxador para viver a liberdade plena de sua arte, te coroando no nosso quilombo, onde os tambores rufam pra te exaltar.
Papo Furado é daquelas figuras que experimenta o encantamento em vida, se imortaliza ainda enquanto convivemos com ele, e quando experimentar a morte será mera formalidade da fisiologia humana, cumprindo a sentença que a natureza impõe, mas desafiando a própria, a finitude da vida, já que ele se faz vida em sua arte e música eternizada em cada pêlo que se arrepiar ao ouvir o bater no couro. Eternizado em seu canto, em cada canto do morro, eternizado em sua liberdade de não ser o que a vida lhe impusera, mas de ser a própria imposição do ser liberto sobre a vida. Um canto que não tem cantos, um canto livre: O canto Livre de Papo Furado!
Ps: ao final da gravação e mixagem do disco “ O canto livre de Edson Papo furado”, que inspira o título do enredo, ele disse ao produtor:
-” Kico, não tira os erros todos não, porque senão não sou eu”
Enredo e Sinopse: Vanderson Cesar